domingo, 3 de maio de 2015

Nada como ouvir o barulho da noite!

Voar é minha profissão, sou piloto de Boeing 737 e assim, por força da obrigação laboral eu tenho que trabalhar nos mais variados horários. Isso quer dizer que enquanto você lê esse texto eu provavelmente estarei longe de casa, cruzando o céu seja num feriado ou fim de semana de dia ou no meio da noite.

Velejando no início da noite!

A noite tem algo especial, é calma, sem a necessidade da pressa do dia, a noite é silenciosa mesmo num avião mas a noite também é traiçoeira, exige do corpo muito mais que o dia, exige a máxima atenção quando na verdade vamos contra a nossa natureza de dormir. Foi com essa filosofia que eu fui mais uma vez para o barco, passar a noite na represa de Guarapiranga.

Sempre escutei que velejar a noite é uma experiência diferente. Alguns velejadores passam noites a bordo seja para ler um livro, para curtir o barulho do vento nos brandais ou para dormir mesmo! Agora, passado alguns anos que estou velejando tomei minha coragem para não só dormir no barco mas também velejar a noite..... e em solitário!

Vista linda de final de tarde

Para dormir no barco, como já havia feito antes, necessito de algum planejamento já para velejar a noite, mais ainda. O meu barco é um Tchê (ou Delta 17). Não é um barco daqueles da sua imaginação com uma cozinha enorme, sala grande e uns 3 quartos com suíte. Bancos de baterias, placa solar e eólica somadas a um motor possante com muitos HP's? Nada.... Meu barco é um veleiro de 17 pés (uns 5,5m), ou seja, se você pensar e comparar, um carro é quase desse tamanho aí (nosso Corolla tem 4,6m), meu motor é o vento e o velho Johnson de 4hp!

A mesinha do meu barco com o lanche
Nosso barquinho é bem arranjado, tanto por fora quanto por dentro. O mastro não tem uma enora, dessa forma você pode aproveitar o bom espaço interno. Temos 1 cama de casal na proa com uns 2m e duas camas de solteiro na popa com quase 2,5m. No centro, temos um bom armarinho e há muitos outros espalhados pela cabine, uma mesa escamoteável e alguns paióis que servem para guardar muitas coisas que temos que carregar (coletes, coisas de limpeza, panos, capas de chuva, documentos, etc) Por fora, no cockpit, há um porão de "carga" onde ficam a gasolina reserva, caixa de ferramentas, cabos extras, âncora, e extintor, tudo tem seu cantinho e nós devemos isso ao seu antigo dono, sr. Kurt que cuidava muito bem do nosso barquinho.

No meu planejamento, eu coloquei algumas coisas importantes: alimentos e água, repelente, lanterna (duas para o caso de uma falhar), roupas de frio, roupas de cama, celular carregado e uma toalha, afinal nunca se sabe quando o manza aqui vai cair na água.

Enchi o tanque de gasolina e lá fui eu, 18:30h soltei a amarra no píer do clube e comecei a velejar com um vento fraco de oeste que me deu um trabalhão para tirar o barco do canal, não queria ligar o motor então tive que dar uns 4 bordos para sair....

A minha idéia, por sugestão dos amigos, era passar a noite no outro lado da represa, perto de umas casas onde tem um píer e há uma pequena baia que me protegeria dos ventos de Noroeste e Sul. A velejada foi de vento MUITO fraquinho, sempre de Oeste o que me fazia ter que dar bordos para chegar pois o local que eu queria ir estava exatamente, adivinhem, a oeste de onde eu estava.

O fim de tarde foi chegando devagar, preguiçoso, eu continuei minha velejada e vagarosamente a noite caiu na represa, muito escura por sinal pois não havia ainda lua. Isso eu devo à aviação, o escuro não me assusta mais, continuei minha velejada pois o objetivo ainda estava relativamente longe. Eu planejava a forma que alcançaria o meu fundeadouro pois não tinha noção exata se poderia entrar mais na baia, não conhecia bem o local então senti que estava um pouco afastado de onde eu realmente deveria estar mas por segurança, me mantive ali mesmo para fundear.

Minha vista da cidade já a noite
Demorei quase 1:30h para chegar, já eram 20h quando baixei o ferro (a âncora), ela unhou o fundo e comecei a arrumar as coisas. Baixei as velas e as amarrei, verifiquei mais uma vez a área para procurar os pontos notáveis e percebi logo que estava sim, bem localizado. Preparei um bom lanche, comecei a ler um livro, coloquei o relógio para despertar em 3h para ter certeza que a âncora não estava garrando e.... apaguei!


Arrumando a cama para dormir, cansado!

Dormi bem. As 3h da manhã, muito depois do relógio ter tocado, eu acordei com um barulho do vento nos brandais, olhei pela janela e vi relâmpagos ao fundo, decidi que talvez tivesse que me abrigar um pouquinho mais e entrei na baía a procura do tal píer. A essa hora a lua que era crescente já tinha surgido no horizonte e havia alguma luz então encontrei logo o tal píer e fiz a manobra e amarração. Pronto, mais umas horas de sono, só que por ter ido dormir tão cedo esse soninho não veio...

As 5h da manhã tinha um vento noroeste, muito fraco, mesmo assim, resolvi zarpar e passear pela represa ainda escura. Fui ganhando a represa, passando pelo largo da Ilha dos Amores em direção a Ilha dos Eucaliptos, a singradura era ótima e eu pude avançar lentamente para o sul da represa. Com o nascer do Sol o vento cessou, acionei o meu velho Johnson e levantei a quilha, fui passear para conhecer um pouco mais de locais que durante o ano passado estiveram cheios de algas impossibilitando a entrada de veleiros com quilha como o meu. Quando, já na proa das Ilhas Carecas, o motor parou, pane seca! Rapidamente eu fiquei coberto de mosquitos branquinhos, pareciam filhotes de mosquito, eram milhares, a água em volta estava coberta deles. Tratei de procurar a bombona de gasolina mas eu tinha menos de 1 litro então decidi que mesmo com pouco vento, eu iria voltar no pano mesmo.

Lindo nascer do Sol velejando

Vi os primeiros barcos de alumínio as 7h da manhã, eram pescadores curtindo o início do dia, eu já estava velejando a umas 2h e o SPYC ainda estava longe. O Sol entrou forte e o vento mudou para noroeste, o que me fez orçar até o clube. Cheguei por volta das 08:30h e com muito sono, decidi que precisava dormir mais um pouco, como o barco ainda estava cheio de mosquitinhos, eu decidi fundear bem em frente ao clube com o vento noroeste para me ajudar a "expulsar" os intrusos.

É incrível a curiosidade das pessoas, me fizeram rir pois várias vezes enquanto tentava pegar no sono. Percebi lanchas, pessoas remando de stand-up e até alguns veleirinhos passando pertinho do meu barco para ver o que tinha lá dentro. Todos davam uma boa espichada no pescoço para ver se enxergavam alguma coisa, que decepção, era só eu dormindo. Como tinha combinado com alguns amigos a me encontrarem ali, fiquei preocupado e nem dormi bem. Resolvi zarpar novamente e fazer a amarração no píer do clube e isso já eram 10h.

Eu e o Neto no píer do SPYC

Pronto, tinha feito tudo que eu queria e mesmo com algum sono, estava feliz da vida, pois mais uma etapa  estava cumprida: velejar a noite em solitário, uma experiência deliciosa!

Se você tem dúvida que dormir no barquinho que você tem é possível, eu já vi gente em saco de dormir em cima do deck, portanto, vá em frente, use o seu barco ao máximo, é diversão garantida!

Fazendo um sumário de distância, eu percorri aproximadamente 9NM a uma velocidade de 3kt, nada mal considerando uma quase ausência de vento.

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